O distanciamento social realizado nos últimos meses por mais de 4 bilhões de pessoas é, comprovadamente, uma das principais medidas entre as que podem ser adotadas para conter a pandemia global de Covid-19. A prática de distanciamento, popularmente chamada de “quarentena”, é indispensável para preservar vidas e deve ser incentivada e mantida de forma horizontal conforme as recomendações da Organização Mundial da Saúde – OMS.
Desde os primeiros casos fatais registrados em janeiro deste ano, na China, a Covid-19 já matou até hoje, 29 de maio, mais de 360 mil pessoas, de acordo com os números oficiais, em quase todos os países. Só no Brasil, os registros de óbitos das vítimas da Covid-19 passam de 27 mil.
Durante a quarentena, diversos problemas sociais crônicos foram potencializados, um deles, extremamente grave, é a violência contra as mulheres. Uma em cada três mulheres e meninas no mundo já sofreu violência física e/ou sexual. Os números de feminicídios, espancamentos, estupros, abusos físicos e psicológicos, entre outros atos repugnantes de misoginia e desrespeito à vida das mulheres aumentaram, de forma alarmante, tanto no Brasil como em vários outros países. A convivência constante com o agressor e o distanciamento da rede de apoio, que pode ser formada por familiares e amigas(os) próximas(os), são fatores que colaboram para o agravamento.
Esse crescimento da violência doméstica motivou o lançamento, em abril, do relatório “A sombra da pandemia: violência contra mulheres e meninas e Covid-19“. O documento foi publicado pela ONU Mulheres, entidade da ONU para igualdade de gênero e empoderamento.
De acordo com Phumzile Mlambo-Ngcuka, diretora-executiva da ONU Mulheres “O confinamento está promovendo tensão e tem criado pressão pelas preocupações com segurança, saúde e dinheiro. E está aumentando o isolamento das mulheres com parceiros violentos, separando-as das pessoas e dos recursos que podem melhor ajudá-las”.
O diretor-geral da OMS, Tedros Adhanom, fez a seguinte declaração durante uma entrevista coletiva, também no mês de abril. “Pedimos que os países considerem os serviços de combate à violência doméstica como um serviço essencial, que deve continuar funcionando durante a resposta à Covid-19”. A fala completa de Adhanom sobre esse tema pode ser vista no vídeo abaixo.
http://www.youtube.com/embed/OkQidzOQFWY
As duas organizações, ONU e OMS, defendem que enquanto durar a pandemia é necessário manter ativos os serviços de proteção à mulher, declarar abrigos como serviços essenciais, investir em canais de denúncias on-line e oferecer suporte às ONGs locais de combate à violência doméstica. A ONU mulheres afirma que governos devem oferecer apoio financeiro às mulheres para que vítimas, que sofreram impactos econômicos da pandemia, possam se afastar de parceiros violentos.
O problema também foi tema de um pronunciamento do líder religioso da igreja católica e autoridade governamental da Cidade-Estado do Vaticano, Papa Francisco. Ele, além de alertar sobre o aumento da violência doméstica durante a quarentena, pediu que a sociedade ampare as mulheres vitimadas e fez uma oração por elas. “Hoje gostaria de recordá-los do que muitas mulheres fazem, inclusive neste momento de emergência de saúde, para cuidar de outros: médicas, enfermeiras, agentes das forças de segurança e agentes penitenciárias, funcionárias de lojas de produtos de primeira necessidade e muitas mães e irmãs que estão trancadas em casa com toda a família, com crianças, idosos e deficientes. Às vezes correm o risco de ser submetidas à violência por uma convivência da qual levam uma carga muito grande. Oramos por elas, que o Senhor lhes dê forças e que nossas comunidades possam apoiá-las ao lado de suas famílias”.
No Brasil também houve agravamento dos casos de violência contra mulheres. Dados da Ouvidoria Nacional de Direitos Humanos – ONDH, indicam um aumento de 37,6% nas denúncias feitas ao Ligue 180 no mês de abril, em relação ao mesmo período do ano passado. Em pesquisa recente, o Fórum Brasileiro de Segurança Pública apontou aumento de 400% no número de feminicídios em Mato Grosso, 300% no Rio Grande do Norte, 100% no Acre e 46,2% em São Paulo.
A escalada da violência doméstica levou à submissão de Projetos de Lei que contemplam essa realidade e buscam mais segurança legislativa para o tema. Pelo menos três desses projetos tramitam na Câmara e no Senado.
O PL 1291/2020 de autoria da deputada Maria do Rosário (PT) e de outras 22 integrantes da bancada feminina de diferentes partidos, trata da ampliação do combate à violência doméstica. Entre as determinações está a obrigação de informar às autoridades, em até 48 horas, sobre denúncias recebidas pela Central de Atendimento à Mulher em Situação de Violência (Ligue 180) e pelo serviço de proteção de crianças e adolescentes vítimas de violência sexual (Disque 100). O texto trata ainda da criação, por órgãos de segurança, de canais virtuais de comunicação para que tais crimes sejam reportados; da garantia de que IMLs realizem exames de corpo de delito, mesmo durante a pandemia, em caso de violência doméstica e familiar. Exige também que a solicitação e a renovação de medidas protetivas de urgência possam ser feitas por meios digitais, mas com atendimento obrigatório presencial para os casos mais graves.
O PL 1798/2020 proposto pela senadora Rose de Freitas (Podemos/ES), permite que, durante o isolamento social, o registro da ocorrência de violência doméstica e familiar contra a mulher, criança, adolescente, idoso e pessoa com deficiência possa ocorrer por meio da internet ou de número de telefone de emergência. Trata ainda sobre a oitiva da ofendida em seu domicílio.
O PL 2690/2020 apresentado pela deputada Érika Kokay (PT) e mais nove deputadas(os), dispõe sobre as condições em casas-abrigo para mulheres e dependentes, cuja permanência precisa ser protegida, segura, sigilosa e integral. Deve ainda ser garantido o desenvolvimento das e dos dependentes de mulheres abrigadas com acesso à educação, tratamentos médicos e atendimentos jurídicos, psicológicos e de assistência social.
Em Minas Gerais a Lei 23.644/2020, cujo projeto teve a autoria da ex-presidenta da Comissão de Defesa dos Direitos da Mulher, Marília Campos (PT), inclui a violência doméstica no grupo de ocorrências que podem ser feitas pela internet. A Lei já foi aprovada, esses crimes podem ser registrados por meio da Delegacia Virtual.
Também foi sancionada em Minas Gerais, a Lei 23.643/2020, originada do projeto do Deputado Charles Santos (Republicanos). A Lei obriga que síndicos(as) de condomínios comuniquem as polícias Civil ou Militar casos de violência doméstica e familiar que acontecerem em áreas comuns e privativas dos residenciais. E torna obrigatório haver comunicados nas áreas comuns dos condomínios, com informações sobre a nova legislação. A determinação permanece enquanto durar o estado de calamidade pública.
Todas e todos, enquanto sociedade, devemos estar dispostas(os) a fazer o possível para minimizar esse “efeito colateral” do período de isolamento. O errôneo ditado popular que afirma que “em briga de marido e mulher não se mete a colher” vem sendo escrito com o sangue das mulheres há tempo demais e precisa ser superado. Nunca devemos deixar de ajudar, entretanto, é preciso ponderar a situação e não fazer nada que acabe nos tornando vítimas também. Se presenciar ou suspeitar que haja um caso de violência doméstica SEMPRE ligue para 180 e 190 para denunciar.
Outras formas de dar apoio
As capixabas do coletivo Juntas e Seguras lançaram uma cartilha com orientações sobre como mulheres vítimas de violência devem agir na quarentena. A publicação foi elaborada para mulheres do Espirito Santo, mas tem informações que podem ser úteis para pessoas de todo o país. Se você faz parte da rede de apoio de uma mulher em situação de risco leia e indique a leitura.
Letícia França – Jornalista da ADUFU*Esta seção é dedicada à exposição da opinião pessoal e das análises profissionais dos jornalistas da ADUFU-SS